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Livro no lixo

Carolina Maria de Jesus
Carolina Maria de Jesus

            É claro que ninguém em sã consciência vai recomendar a lata de lixo como destino para aqueles livros dos quais, por qualquer motivo, decidimos nos desfazer. A despedida de um livro consiste em doá-lo. Aqui em casa, é o que faço com os livros que não pretendo ler ou que já li e não pretendo reler as partes grifadas. Pouco antes da quarentena, levei alguns exemplares para minha ex-cunhada, quando fui pegar minha filha na casa dela; nos últimos meses, aproveitei algumas idas ao supermercado ou à farmácia para depositar dois ou três na pequena prateleira instalada na parede lateral de uma loja de roupas na rua de cima; já deixei um livro numa prateleira também de doação numa UBS; me arrependo de, há alguns anos, ter respondido “Ah, sim, vou mandar alguns” ao e-mail de um bibliotecário me pedindo doações e ter esquecido. Completamente.
            Livros são doados. Não gostaria de ser surpreendida, no meio de uma conversa simpática, pela descoberta que meu interlocutor tem o costume de jogar livros no lixo. Lamento pelos leitores que se desencontraram de livros em bom estado porque seus antigos donos acharam por bem jogá-los na lixeira. Assim eu organizava meu mundo.
            E então, numa noite qualquer, tomando uma sopa no sofá, ligo a televisão e lá está uma moça falando num tom sentido e sábio no programa Provocações. Vou com a cara da moça. Ouço-a por um tempo e descubro que se trata de Eliane Dias, empresária do Racionais MC’s. Então Eliane conta que, mais jovem, buscava lavagem para porcos com seu Juca, marido de Dona Maria, quando viu um livro ali, no lixo, e o pegou sem pensar muito. “Graças a Deus”, ela diz em seguida. “Graças ao universo…”. O livro era Quarto de Despejo, de Carolina Maria de Jesus. Foi o primeiro livro que ela leu na vida, e acabou marcando-a profundamente. É bonito como ela se emociona ao falar do livro. Também fui marcada profundamente por ele, talvez por alguns motivos semelhantes e outros diferentes, mas a escrita da autora também aconteceu em mim. Por isso, sinto como que um fio invisível ligando nós três – Eliane, Carolina e eu.
            Desligo a TV. Perturbada e satisfeita. Às vezes faço isso, desligo a TV, fecho um livro ou os olhos no momento mais forte, como um corte lacaniano. Meu mundo organizado se expandia em um leve tremor. Não posso explicar esses temores, mas preciso acomodá-los melhor dentro de mim, e por isso fecho, desligo, faço uma pausa. Respiro.
            É claro que ninguém em sã consciência vai recomendar a lata de lixo como destino para aqueles livros dos quais, por qualquer motivo, decidimos nos desfazer. É claro. Mas ali, nos espaços não tão claros, os acontecimentos também se locomovem. Rebeldes à nossa vontade de ordem, ganham vida. Nesse terreno habita o gesto do desconhecido que em insana consciência joga fora um livro.
            A despedida de um livro consiste em doá-lo, mas suas páginas percorrem caminhos que nem sempre adivinhamos. Restam os tremores: da expansão do mundo organizado e de um pequeno sorriso. Restam as generosidades providenciadas pelo acaso. A pessoa que se livrou do livro jamais saberá que seu gesto foi generoso para alguém – a vida se movendo de uma maneira que não entendo.

(1) Comentário

  1. Muito boa a reflexão proposta. Sempre interessante perceber como os caminhos vão sendo trilhados sem que possamos prever onde nos levarão.

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